As gravuras de Mariana Quito
"Não conheci Mariana Quito pessoalmente, mas ouvi de todas as pessoas com quem conversei que ela era uma figura frágil e delicada.
Um desses relatos foi o do artista português David de Almeida (1945), que por e-mail, contou-me que chegando um dia em um final de semana as oficinas da Cooperativa de Gravura encontrou Mariana, sozinha, tentando libertar-se sem sucesso de uma pesada pedra litográfica que lhe estava sobre uma perna. David declarou que não foi nada grave, mas ressaltou o ocorrido como resultado da fragilidade de Mariana.
A gravura é um meio expressivo no qual o aparato técnico é ostentoso e os procedimentos requerem um esforço físico considerável.
Em um primeiro momento pode parece um tanto estranho uma figura tão frágil ter elegido a gravura como um dos seus principais meios de expressão, porém observando a obra gráfica de Mariana Quito percebemos que se fisicamente ela foi uma pessoa delicada, seu espírito era o de um gigante.
Mariana concretizou suas potencialidades criativas em suas gravuras construindo sua individualidade, um sentido de viver tão pessoal, uma aspiração humanista no compromisso consigo mesmo e com seus ideais.
Nos seus trabalhos percebemos uma liberdade interior transbordando em uma forte expressão, encontramos os traços de sua personalidade, caráter e seus valores de vida, fundidos aos conhecimentos e sensibilidade.Tudo isso interligado e integrado moldou o estilo dessa artista e se como nos diz Ostrower (2003, p. 72 ) o “estilo é a pessoa” e na obra de Mariana que vamos conhece-la.
Mariana Quito predominantemente se expressou em grandes formatos, sua obra tem na sua maior parte dimensões expressivas para obras gráficas. Mas não é só no tamanho que percebemos sua força, seu espírito guerreiro, mas na forma de expressão que ela utiliza; na sua linguagem.
Mariana bebeu das mais diversas fontes de inspiração: homenageou Picasso, visitou Copérnico, apreciou cada bairro de Luanda, identificou e denunciou a opressão das pessoas por todos os lugares por onde passou e ainda encontrou tempo para olhar carinhosamente para sua família retratando seus irmãos.
Observando sua obra percebemos algumas características constantes. A técnica que ela chamava de “montagem”, quando utilizava várias matrizes agrupadas para compor uma imagem, é algo que utiliza nas gravuras que remontam a sua fase francesa e em vários outros momentos. Da mesma forma, a pintora Mariana está presente em cada gravura pelo colorido, o qual ela utiliza conectando o sonho a realidade. As cores na gravura de Mariana foram obtidas através do emprego da técnica de diferentes viscosidades, desenvolvida por Stanley William Hayter (1901 - 1988), de forma que encontramos pouquíssimas gravuras de Mariana utilizando somente o preto e branco.
Mariana se utiliza de uma textura não só visual, mas táctil, devido a forte mordida do ácido nítrico, obtendo relevos sensórios no papel. Essas texturas irão se mostrar mais representativas nos trabalhos da década de 70, quando ela se utiliza da técnica que chama de “Goetz”. Essa técnica é derivada da técnica do carborundum desenvolvida pelo artista Henri Goetzs (1909- 1989) e consiste em uma técnica aditiva na qual o carborundum é fixado a matriz com a finalidade de se obter texturas e relevos. Mariana, porém, vai além e sobre uma matriz de madeira agrega outros tipos de materiais explorando ao mesmo tempo a textura e o côncavo típico da técnica de xilogravura.
Nas obras de Mariana encontramos uma virtuosa na aplicação das técnicas tradicionais, e uma grande exploradora quando de forma não tradicional extrapola os limites do que foi apreendido criando sua própria poética.
Infelizmente, as palavras que utilizo na tentativa de falar um pouco sobre a obra de Mariana Quito, não são suficientes nem exatas, pois como todas as palavras, nem de longe transmitirão o conteúdo expressivo, nem tampouco a espiritualidade das obras. A linguagem formal se dirige a um nível de consciência diferente da linguagem verbal, o que torna necessário ver, apreciar as formas expressivas do trabalho gráfico de Mariana para sentir e apreender seus conteúdos.
Por onde passou, Mariana lutou pelo ensino e divulgação da gravura original, mas principalmente a vivenciou e sobretudo não separou a criação artística de seu viver. Essa vivência é o que ela compartilha até hoje conosco nas suas obras."
Márcia Santtos
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